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A verdadeira revolução

 

09h33 CEST

29/08/2024

Li muito acerca de Sven-Göran Eriksson nestes últimos tempos, desde que o treinador sueco soube que sofria de um cancro terminal no pâncreas e começou a empreender o périplo pelos locais onde tinha sido feliz a fazer aquilo de que mais gostava, que era comandar grupos de jogadores de futebol. E li tanto que comecei a duvidar da minha perceção acerca da que terá mesmo sido a verdadeira revolução operada por aquele rapaz do campo que os portugueses da minha geração recordam com um panamá meio apatetado no topo da cabeça – mas que os suecos, por exemplo, já lembram com um casaco acima do tamanho certo e que os ingleses, que o apanharam na fase sofisticada, depois da passagem por Itália e das liras lhe começarem a preencher a conta bancária, só podem evocar com os fatos de alta-costura feitos à medida. Que Eriksson foi fundamental no último meio século de futebol em Portugal é indiscutível. A questão que comecei a colocar a mim mesmo nestes últimos meses é: porquê? E já tive mais certezas de que tenha sido por razões essencialmente futebolísticas.

Semanas antes de ter falecido, esta semana, nas margens do lago Fryken, em Sunne, onde viveu os últimos dias, Eriksson mostrou em entrevista ao Guardian inglês que mantinha viva a obsessão pelo futebol e revelou que na véspera da conversa até vira cinco jogos do torneio olímpico, da mesma forma que assistira a todos os desafios do Europeu 2024. Ora, ver cinco jogos num dia é dose até para alguém na plena posse das suas faculdades, quanto mais para quem, como o sueco, nessa conversa mantida através de Zoom, se descrevia como um “doente saudável”. Mas sem o futebol Eriksson teria provavelmente falecido como o padeiro ou o agente de seguros de Torsby, a pequena cidade um pouco mais a norte, bem dentro da Varmländ sueca, onde, um dia, ainda adolescente, numa festa bem regada com os amigos, escandalizara a proverbial modéstia nórdica ao anunciar que ia ser famoso. Seria isso, provavelmente, que os amigos lembrariam nos elogios fúnebres, não o seu casaco oversize, o panamá na cabeça ou os fatos de alta-costura. Se o que marca o homem a quem os italianos vieram a chamar “o reitor” é o futebol, o que define o impacto que ele teve por cá é a adoção da defesa zonal e do pressing, metidos no 4x4x2 de um jogo mais direto e britanizado, as particularidades que transformaram o Benfica em 1982, quando Fernando Martins se deixou convencer por Borje Lantz e contratou o treinador que acabara de ganhar a Taça UEFA com o IFK Gotemburgo. 

Foi com esse futebol que o Benfica passou da equipa amorfa na segunda temporada com Lajos Baroti, um treinador dos anos 50, para um coletivo pronto a abraçar a modernidade e a jogar finais europeias – e, tal como o IFK Gotemburgo voltou depois a ganhar a Taça UEFA, em 1987, no que foi o canto do cisne do futebol sueco em termos de clubes, fazendo-o montado naquilo que Eriksson tinha construído, também o Benfica repetiu em 1988 e 1990 a presença em finais europeias, fazendo-o a partir da revolução iniciada pelo sueco. Foi o quê? O treino baseado no contacto mais ou menos permanente com a bola e não em crosses e incessantes exercícios de resistência? A defesa zonal com pressing subido em vez do homem-a-homem com líbero e central de marcação que era ainda uma escola a ter em conta naquele início dos anos 80 – e que entretanto voltou, modernizada? Era também isso, sem dúvida. Mas Eriksson não fazia a esse respeito senão aquilo que vira a Bob Houghton ou Roy Hodgson, os ingleses que tinham feito carreira a comandar o Malmö FF ou o Halmstads BK na década de 70. A escola zonal, que veio a ganhar nome sobretudo em Itália, quando o também sueco Nils Liedholm a abraçou e deixou a semente depois aproveitada por Arrigo Sacchi para construir o Milan dos holandeses, já estava aí e era muito provável que também em Portugal já tivesse os seus discípulos. Mas, sendo seguro que quando uma pessoa morre aparecem sempre os mais inesperados elogios, o que de Eriksson têm dito aqueles que foram seus jogadores um pouco por todo o lado, dos que no início, a gozar, em Gotemburgo, lhe chamavam Sven-Erik Göransson aos ingleses que com ele atravessaram o período negro dos tabloides e da intromissão nas vidas privadas de cada um, despertou-me para outra dimensão da revolução. A das relações humanas, que Sven dominava como poucos.

É difícil encontrar algo de interessante dito por Eriksson nas suas muitas entrevistas e até nos livros que escreveu – ou inspirou. Em termos de doutrina, o treinador sueco foi um dos tipos mais aborrecidos que passou pelo futebol nos últimos 50 anos. E, no entanto, não há quem tenha coisas más a dizer sobre dele. Tord Grip, o último treinador de Eriksson, no Degerfors IF, o mentor que o levou a abandonar a carreira de modestíssimo lateral direito para ser seu adjunto e que 20 anos depois viu os papéis inverterem-se, tornando-se ele adjunto, na Lazio, lembrou recentemente que sempre que chegava ao clube, fosse ele qual fosse, Sven fazia questão de ir dizer bom dia a toda a gente, desde o diretor aos ajudantes de cozinha, ao roupeiro ou ao tratador da relva. “E sabia os nomes de todos”, completa. Pode parecer muito estranho a quem recorda algumas facetas da vida e da carreira de Eriksson. A forma como foi deixando os filhos em segundo plano face à pressão da carreira, logo no início, a maneira como saltitou de caso amoroso em caso amoroso, sempre amplificada pelo tratamento ignóbil que era dado ao tema pelos tabloides, a falta de acompanhamento que fez do seu gestor de ativos, que o deixou na ruina com uma série de maus investimentos e o levou a avolumar a obsessão pelo dinheiro na fase final da carreira, bem à vista na relação com o Notts County ou no escândalo criado pelo convite do falso “sheik”, que na verdade era um repórter do News of The World, tudo isso nos levaria a tudo menos à ideia de que Eriksson fosse uma “pessoa de pessoas”. Mas era, pelo menos quando o metiam dentro do contexto de um clube de futebol.

A ligação profissional que manteve a partir da década de 90 com o psicólogo do desporto norueguês Willi Railo há-de ter aprofundado esta faceta, mas ela era já marcante no jovem Eriksson dos inícios, numa altura em que o tratamento personalizado não estava na moda sequer no domínio empresarial ou no atendimento ao cliente. No futebol, então, dar atenção aos problemas específico de um jogador podia ser visto como fator criador de injustiça dentro de um grupo. “Porquê ele e não eu?”, perguntaria um companheiro de equipa mais ciumento. Mas na verdade não é assim que funciona. No livro “On Football”, que escreveu com Eriksson e com o jornalista sueco Håkan Matson, Railo contou um caso que exemplifica a importância do tema: “Uma equipa tinha grande espírito coletivo e muita motivação. Os resultados eram muito bons. Mas a dada altura o treinador descobriu que dois ou três jogadores começavam a perder a motivação. Não conseguia entender porquê. Nos treinos, tinha tratado toda a gente da mesma maneira, acreditando que isso é que era justo. Mas os jogadores tinham problemas privados, um no trabalho, outro com a namorada... O perigo numa situação destas é que esse espírito negativo se espalhe de dois ou três jogadores para o resto da equipa. E a solução é dar mais atenção aos indivíduos”. No fundo, mais do que acertar nas táticas ou na escolha dos jogadores, na operacionalização de conceitos de jogo no treino, o treinador tem de ser capaz de liderar, de atender às necessidades de cada um, de fazer passar a mensagem de que está lá para todos, do craque da equipa ao auxiliar de cozinha. E isto tanto pode ser genuíno como pode ser uma forma de deixar bem à vista que quando nos tocar a nós ele também vai dizer presente.

Não deixa de ser interessante que as últimas três revoluções do futebol português – Pedroto, Eriksson e Mourinho – tenham todas esta vertente humana associada, no caso de Pedroto na forma como deixou cair os consagrados que não queriam submeter-se à disciplina profissional de grupo ou como defendeu os jogadores face à lei da rolha, no de Mourinho na maneira como dava férias intercalares a alguns jogadores ou como os defendia face a tudo o que vinha do exterior. Ou ainda que, esta semana, na Gala da Liga, Rúben Amorim tenha distribuído elogios por todo o staff quando recebeu o prémio de treinador do ano. Não é isso que faz o treinador, mas não dá para ser treinador sem isso.


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