02h01 CEST
30/08/2025
Luís Filipe Vieira foi confrontado, na entrevista que deu à TVI e à CNN, com o que tinha dito há uns anos – que “nem que Cristo voltasse à Terra” seria outra vez presidente do Benfica. E, no entanto, ali estava ele a recandidatar-se a um cargo que ocupou durante 18 anos, de 2003 a 2021. O que é bizarro é que não há aqui nenhuma contradição. Porque não me entra na cabeça qualquer hipótese de o antigo presidente ganhar as eleições de Outubro. A questão é que, estando ele carregado de razão nalgumas das coisas que disse, sendo impossível ignorar a esperteza que suporta o edifício que ele criou, o que esta entrevista deixou à mostra foi que aquele futebol em que ele prosperou e é perito, aquele futebol das negociatas e das influências, não volta mais. Sim, fica a ideia de que o Benfica de Rui Costa está a perder o pé e a entrar numa espiral perigosa de gastos de mercado que lhe vai impedir a saúde financeira simplesmente com uma venda por ano. Mas não, não é possível suportar hoje as estratégias que Vieira utilizava para manter o seu Benfica à tona. Tudo se resume a uma pergunta que o próprio Vieira fez quando o confrontaram com as compras de dezenas jogadores que nem se destinavam a representar o clube: “Então como é que nós dávamos resultados positivos todos os anos?” A resposta explica tudo.
Vieira trouxe para cima da mesa um par de vezes a ideia de que a segunda melhor década da história do Benfica, logo a seguir à de 60, foi a que decorreu entre 2010 e 2019. A década em que, com ele ao leme, conquistou o tetracampeonato e em que viu o penta escapar por pouco, à conta de um golo marcado por Herrera, em Abril de 2018, no último minuto de um clássico na Luz. O empate teria mantido os Encarnados na frente da tabela, a quatro jogos do fim. A vitória permitiu ao FC Porto de Sérgio Conceição passar para um primeiro lugar que já não perdeu. Mesmo assim, nessa década, o Benfica ganhou seis campeonatos em dez e esteve em duas finais da Liga Europa. E, no entanto, fê-lo num cenário de aparente desperdício, em anos nos quais acumulava compras de dezenas de futebolistas que nunca vieram a jogar pelo clube, com a intenção confessada de os “emprestar”. Muitos negócios incluíram comissões que não é possível sequer sonhar em justificar com argumentos válidos, razão pela qual estão metidos na Operação Cartão Vermelho. Vamos dar de barato que, quando reconhece que gastava esse dinheiro só para emprestar os jogadores, Vieira nem estaria a pensar no que nos ocorre logo a todos – que estaria a comprar boas-vontades a adversários que não deviam tê-las. Usemos, no entanto, uma boa dose de ingenuidade para achar que não, que quando Vieira comprava os passes desses jogadores e os colocava a rodar nos adversários que resolvia ajudar, estava só a pensar ganhar dinheiro para o Benfica. Porque a pergunta era, recordemos, “como é que nós dávamos resultados positivos todos os anos?”.
Na saúde, por exemplo, fala-se cada vez mais em medicina holística, uma abordagem única a todas as maleitas, sem querer tratá-las isoladamente, porque umas influenciam as outras. O que Vieira fez nesses anos no Benfica foi uma espécie de gestão holística do mercado. O Benfica contratava jogadores de que não precisava, pagava comissões pornográficas aos seus agentes, punha-os a rodar em clubes de menor dimensão mas a seguir ainda os vendia com lucro. E volta a pergunta: “Como é que nós dávamos resultados positivos todos os anos?” A resposta está nas parcerias com os agentes que faziam as vendas, o mais conhecido dos quais era Jorge Mendes. Não foi só Djaniny, o avançado cabo-verdiano que o Benfica contratou à UD Leiria por 500 mil euros para emprestar ao Olhanense e depois ao Nacional até ele ser vendido com vantagem ao Santos Laguna, o clube mexicano onde o treinador Pedro Caixinha unia as pontas – tinha orientado o jogador em Leiria. Acima, nos mercados que contam, eram casos como o de Raul Jiménez, o milagroso avançado mexicano que quanto menos jogava mais se valorizava. Raul foi contratado pelo Atlético Madrid ao America, do México, em Agosto de 2014, por 10,5 milhões de euros. Num ano em Madrid, foi seis vezes titular, marcou um golo, mas mesmo assim mudou-se para o Benfica, em 2015, por 22 milhões de euros. Já se vê que teria de sair de Lisboa por mais dinheiro ainda, o que não era fácil. Por isso passou cá três épocas. Na primeira, foi 15 vezes titular, na segunda juntou-lhe mais nove e na terceira outras dez. O total de golos também foi sempre a diminuir: 12 em 2015/16, 11 em 2016/17 e oito em 2017/18. O suficiente, ainda assim, para que o Wolverhampton aceitasse de bom grado que lhe rebentasse a bomba em casa, pagando três milhões de euros por um empréstimo de um ano, mais 38 milhões pela compra em definitivo do jogador.
Casos como o de Raul Jiménez demonstram duas coisas. Uma, a forma que o Benfica tinha de dar lucro: conseguia vendas ainda mais inflacionadas do que as compras. A outra, que Vieira não estava totalmente inocente quando acusava a direção de Rui Costa de ter inventado estas compras milionárias. Sim, é certo que o Benfica de Rui Costa deixou agravar bastante a bolha gastadora e passou a acumular aquisições acima dos 20 milhões de euros como quem bebe um copo de água. Só este ano foram Ríos e Ivanovic – e ainda está para vir mais um. Mas antes isso já tinha sucedido com Kökçü, Marcos Leonardo, Artur Cabral ou Enzo Fernández. O que não se pode é parar aqui. Andando mais para trás descobrem-se os casos de Darwin Nuñez, Everton, Weigl, Raul de Tomás oud o próprio Raul Jiménez, todos ainda no tempo de Vieira. Se tinha a garantia de que eles iam sair pelo menos pelo que custaram, como aconteceu com o guarda-redes Roberto, vendido ao Real Saragoça com 100 mil euros de lucro depois de uma temporada em que fracassou, isso já é outra coisa. Mas é uma outra coisa que dificilmente é articulável no futebol de hoje, um futebol em que os clubes de acolhimento disponíveis para rebentar já só estão na Arábia Saudita, pois acabou a Rússia, acabou a China, os hospedeiros de Espanha e Inglaterra estão a braços com regras draconianas de fair-play financeiro e tudo se tornou mais complicado.
Sim, fica a ideia de que Luís Filipe Vieira até terá alguma razão quando se queixa do que Rui Costa fez com o legado que ele lhe deixou. Diz agora o ex-presidente que o líder que ele tinha escolhido para lhe suceder afinal não tem caráter. E diz mais. Insinua que ele entra tarde e sai cedo, que se deixou aprisionar pelos interesses de amigos e até de um partido político – o PSD – e que, além do mais, permitiu que o património do clube se deteriorasse e que a estrutura, os recursos humanos que a servem, ficasse destruída. Se isto é mais ou menos grave, pois já dependerá do ponto de vista, do ângulo pelo qual se olha para a coisa. Mas parece claro que algo vai mal se, num ano em que teve mais de 100 milhões de euros de receitas entre a Liga dos Campeões e o Mundial de clubes, o Benfica se vir forçado a fazer mais vendas para ter um resultado positivo do exercício. As contas da SAD – como os julgamentos em tribunal cujo veredicto Vieira ainda aguarda – já não chegarão a tempo das eleições, mas para um e para o outro servirão sempre como elemento dissuasor de confiança. Quem for votar levará sempre um “E se isto correr mal?” no subconsciente. E se Rui Costa andar mesmo a delapidar as contas com uma gestão irresponsável? E se Vieira for mesmo condenado? É isto que torna as eleições tão abertas. Mas não foi fundamentalmente isto que nos disse a entrevista a Luís Filipe Vieira. Porque, bem vistas as coisas, Rui Costa ainda pode virar tudo a seu favor se a equipa for ganhando. A Vieira, não sobram mais trunfos. E Jesus Cristo poderá ficar sossegado.
