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Ganhou o futebol

 

17h54 CEST

29/07/2024

Poucos estavam a ver isto acontecer, que todo o processo de constituição desta equipa por Luís de la Fuente, em cima dos escombros do caso Rubiales-Jenni Hermoso, no Verão passado, suscitou dúvidas, as primeiras éticas e morais, as segundas de qualidade, e as derradeiras de adequação. 

As éticas, o selecionador espanhol pô-las de parte logo em Setembro, ao abrir a conferência de imprensa em que anunciou a primeira convocatória da época com um pedido de desculpas públicas pelo modo alarve como tinha aplaudido o discurso marialva em que o presidente da Federação justificava o beijo roubado à jogadora como se isso fosse seu direito. De la Fuente não fugiu às perguntas – antecipou-se, aliás, e depois ainda lhes respondeu. Exemplo clássico de contra-pressão e caso resolvido! 

As segundas, as dúvidas de qualidade, nascidas no facto de a equipa estar recheada de jogadores que nunca tinham ganho nada e de outros que já pareciam longe do apogeu de tempos idos, foram sendo resolvidas jogo-a-jogo na fase final, à medida que eles iam ganhando a todos os campeões mundiais que lhes surgiam pelo caminho. Primeiro a Itália, ainda na fase de grupos, num chocolate difícil de explicar, tamanha foi a superioridade técnica, tática e de mentalidade. Depois a Alemanha, na única tarde em que a seleção de Espanha foi protegida pela sorte, no desafio que ganhou mas podia ter perdido, na sequência de um erro que de la Fuente não cometeu mais – recuar, abdicando dos jogadores distintivos, que são os extremos com capacidade para levar a bola com eles. A seguir a França, batida mesmo depois de ter estado em vantagem, em jogo no qual a qualidade individual teve um peso enorme. E por fim a Inglaterra, perdida na tentativa de anular o futebol espanhol em vez de tentar aproveitar o que tem de melhor. 

Mas foi na terceira questão que esteve a razão pela qual o futebol tem o dever de aplaudir esta vitória de Espanha e de aprender com ela. Porque a seleção espanhola não foi só a mais atrativa do Europeu, juntando entre os seus admiradores os que já lá estavam desde que ela importara o jogo posicional e de posse do FC Barcelona de Pep Guardiola e os que agora a veem jogar uma modalidade diferente só porque somou a essa ideia a opção por jogadores que arriscam nessa posse, seja verticalizando o passe ou transportando e assumindo o um para um. Esta Espanha é atraente porque trata bem a bola, sim, mas isso sempre o fez – até no carrossel estéril que Luís Enrique levou às últimas fases finais o fazia. Esta Espanha é atraente porque arrisca mais, sem renegar as origens. Atrai e funciona porque, na junção das duas ideias, respeita os jogadores que tem e deixa-os ser livres. 

O maior mérito de Luis de la Fuente, visto de fora, foi o de ter escolhido um lote de jogadores, de ter olhado para eles e perguntado a si mesmo: “como é que eles ficam mais confortáveis para exprimir o futebol que trazem?” De certa forma, o selecionador espanhol escolheu a opção mais simples, não se importando se depois os analistas olham para a equipa dele e vos dizem que ela joga um futebol de ensino básico, no qual tudo é aquilo que parece e não há cá camadas e ensaios multi-estruturais. Southgate, Martínez ou Deschamps, só para citar aqueles que tinham mais talento puro à disposição, fizeram o oposto: entraram na competição com um diagrama na mente e quiseram adaptar os jogadores a ele. Talvez até funcionasse, num clube, com mais tempo para trabalhar, que não quero com esta reflexão negar a evolução ou dizer que só o que é simplista funciona. Pelo contrário. Mas num Europeu, numa prova que tem no máximo sete jogos, sem o tempo necessário para operacionalizar conceitos, numa prova que os treinadores encaram com um universo limitado de escolhas, na qual não dá para ir ao mercado buscar a peça que faça a coisa funcionar, o exercício só podia fracassar. A Espanha ganhou e isso deve deixar-nos felizes, porque além de ser a equipa mais atraente e competente, foi a equipa mais verdadeira e prática.

E depois há o debate acerca das escolas: nasceu logo na estreia espanhola na prova, porque o jogo ganho (3-0) à Croácia foi o primeiro em anos no qual a equipa não teve mais posse de bola do que os adversários. Estaria a Espanha a renegar a herança de Guardiola e do tiki-taka? Vêm uns, todos contentes, a dizer que sim, como se tivessem matado o monstro. Aparecem outros, indignados, a dizer que não, que ele ainda se mexe. Acho que não é caso para um alarido tão grande. Primeiro, porque o próprio Guardiola, ao longo dos anos, renegou umas coisas e adotou outras. Chama-se evolução e se há treinador que evolui sempre é ele. Depois porque a grande diferença entre a Espanha de 2024 e as que, ganhando ou perdendo, reivindicaram um estilo próprio desde 2008, não está no futebol que joga mas nos jogadores que utiliza. No fundo, com Lamine Yamal e Nico Williams, dois extremos que vão para cima, que arriscam no drible e no passe – por isso mesmo conduzindo a perdas de bola e a uma posse menos avassaladora –, a Espanha encontrou o que o FC Barcelona do tiki-taka já tinha desde os primórdios. Salvaguardando as diferenças evidentes de qualidade, encontrou os seus Messis. 

Sim, a base do jogo espanhol continua igual: jogo posicional, formação de triângulos, tabelas, troca de passes, bom tratamento da bola. E sim, esta equipa é muito diferente das que a antecederam, porque tem jogadores que acrescentam a tal verticalidade que Messi dava àquele Barça. A única coisa que me parece é que esses jogadores sempre existiram em Espanha, com outros nomes e caraterísticas diferentes das de Lamine Yamal ou Nico Williams, e que a escolha de não contar com eles, de os preterir em função do tal jogo circular e do monopólio da bola era isso mesmo: uma escolha. A verdade é que há uma raiz coletiva no jogo de Espanha, mas o descaramento de assumir o risco individual esteve na base de vitórias como a conseguida na meia-final com a França ou até no golo inaugural da final contra a Inglaterra. É o facto de assumir esta escolha diferente que faz desta equipa uma equipa diferente. Sem apostasias de qualquer espécie.


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