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Porque votei em Rodri

 

16h04 CET

31/10/2024

Era o que me faltava, chegar aos 54 anos e de repente saber que fiz parte de uma conspiração racista responsável pela vitória de Rodri sobre Vinicius Júnior na corrida à Bola de Ouro que a imprensa de Madrid já tinha “entregue” ao brasileiro, antes mesmo de eu ter depositado o meu voto. Era o que me faltava, chegar aos 54 anos e, eu que até sou a favor de uma Superliga desde os 20, descobrir que agora integro uma conspiração política comandada pelos invisíveis tentáculos da UEFA, que terá achado que a melhor maneira de punir o Real Madrid por ter tido a iniciativa de forçar a criação da tal Superliga que eu defendo era convencer a “France Football” a entregar-lhe os prémios de clube do ano e treinador do ano, na pessoa de Carlo Ancelotti, mas depois negar a consagração de Vinicius Júnior em favor de Rodri, um tipo que em 2023/24 perdeu apenas um jogo em 58. Fui este ano convidado a integrar o júri de 100 jornalistas internacionais que vota na Bola de Ouro e vou explicar por que razão votei em Rodri e garantir que, não, não foi porque sou racista – nem admito que mo sugiram! – e não, não recebi pressão de rigorosamente ninguém. Numa era em que as teorias da conspiração se propagam como o fogo no mato em Julho e Agosto pode ser difícil de entender, mas foi o que aconteceu.

Fui convidado em Setembro para ser o novo jurado português na Bola de Ouro. O convite foi feito por Vincent Garcia, editor-chefe do France Football. Aceitei com orgulho, em primeiro lugar porque a France Football foi uma referência para mim desde os tempos em que me fiz jornalista, no final dos anos 80, início dos 90, porque trazia tudo e era a melhor (a única...) forma de alguém estar informado acerca do futebol internacional num tempo pré-internet, e depois porque reconheço muito prestígio ao prémio. Lamento desapontar os que conseguem ver em tudo a maldade que têm dentro deles, mas este não é um convite que pressuponha qualquer tipo de remuneração ou vantagem. Não fui convidado para a gala no Théâtre du Châtelet nem para quaisquer opíparos jantares (em que seguramente se combinariam todos os votos de maneira a orquestrar vencedores e vencidos). Mais: se quero ler a revista tenho de a pagar, como todos vós – e é assim que tem de ser. Não disse a ninguém que tinha sido convidado e respeitei o código de conduta que me foi enviado, que impunha silêncio acerca dos votos até ao dia em que o resultado final fosse divulgado – que foi na segunda-feira. Não tive qualquer palavra a dizer sobre a escolha dos nomeados, que já estavam escolhidos e inseridos na plataforma em que se vota no dia em que a ela me foi dado acesso. Recebi ao mesmo tempo os critérios – e isto é importante para entenderem o que aconteceu a seguir. A votação deveria premiar a época de 2023/24, desde Agosto a Julho, e obedecer, por ordem, a performances individuais, performances coletivas, classe e fair-play. E o segredo, aqui, está na interpretação destes critérios. Mas também a isso voltarei mais à frente, para que me entendam.

Sou um procrastinador nato e, por isso, apesar de já se ter extinguido o período ao qual devia referir-se a votação, não votei logo. Acabei por fazê-lo a 20 de Setembro, dez dias antes do fim do prazo. Antes mesmo de ter votado, vi manchetes de jornais espanhóis a garantir que seria Vinicius Júnior o premiado – não me espantaria, porque a época do extremo brasileiro foi muito boa. Da mesma forma, não me surpreendia que as “fontes” da imprensa de Madrid fossem desde logo capazes de garantir o resultado de uma votação em que, conhecendo eu bem a classe jornalística, tinha quase a certeza absoluta de que mais de metade dos votantes estariam a procrastinar como eu. Dou sempre o devido desconto a estas coisas, porque volto ao dia em que o meu caminho e o da imprensa desportiva começaram a separar-se de forma inapelável, apesar de algumas tentativas mútuas de reconciliação, que foi o dia de 2003 em que, como subchefe de redação do Record, estive na conferência de um consultor espanhol, ex-diretor do diário As, em que ele nos dizia que o segredo do sucesso passava por “vender” conquistas, boas notícias, esperança e por ser “fanático”. “Mais fanático do que os fanáticos”, concretizava. Entendi e passei à frente, com mais uma ferramenta para conseguir interpretar o Mundo à minha volta – e foi assim que vi as manchetes madrilenas (ou madridistas...) de meados de Setembro. E votei, em consciência, colocando Rodri em primeiro lugar. Porque ele foi em 2023/24 o melhor que um médio-centro pode ser. Porque foi imperial no meio-campo do Manchester City, campeão inglês e mundial, e da seleção espanhola, campeã da Europa. Em 2023/24, entre clube e seleção, Rodri fez 58 jogos e só perdeu um, que foi a final da Taça de Inglaterra, contra o Manchester United. Fez 12 golos e 13 assistências, que são números notáveis para um médio-centro. Não tem a magia de Vini Júnior no drible? Não, de facto. Mas nem tem de ter – da mesma forma que Vini Júnior não tem de ter a capacidade de desarme ou a inteligência posicional do médio que ontem o suplantou na votação. 

O futebol é um jogo coletivo, em que cada um tem missões claramente definidas e, na minha opinião, na atribuição de prémios individuais, o que deve ser avaliado é a capacidade de cada um para desempenhar a sua missão em específico. A Bola de Ouro não premeia o melhor driblador, o maior goleador, o autor das melhores defesas ou quem faz os carrinhos mais espetaculares. Premeia o melhor jogador. Não podemos andar nuns anos a queixar-nos de que os defesas e os guarda-redes nunca podem ganhar estes prémios e depois, quando não é escolhido um extremo driblador, comer todos os vídeos que nos mandam com a seleção dos lances em que o médio foi ultrapassado ou em que o extremo fez golos. Não podemos andar nuns anos a queixar-nos de que Messi ganha o The Best da FIFA à conta da popularidade que leva os muitos milhões de seguidores que tem a votar nele, em eleição online de contornos duvidosos, e questionar os critérios da Bola de Ouro, cuja decisão a France Football entregou a 100 jornalistas independentes. Na verdade, como está o Mundo, só há uma votação na qual nos reveríamos, que era a nossa, mas também isso diz muito mais da intolerância espalhada por aí do que sobre algo que tenha que ver com futebol.

A subjetividade de um prémio como este leva sempre ao aparecimento de contestações. Não vou sequer validar as mais tontas com respostas longas. Não, não escolhi Rodri por ser branco e Vini ser negro – nem admito que alguém pense isso a meu respeito, porque estive e estarei sempre do lado certo dessa luta. Não, não escolhi Rodri para punir o Real Madrid por causa da tentativa de criação da tal Superliga rebelde – e quem quiser ler o que tenho escrito sobre a Superliga só tem de usar a lupa no meu Substack e procurar os textos em que defendo que o futuro passa por aí. Não, não escolhi Rodri à conta de pressões vindas seja de onde for – e muito menos da UEFA, organismo que tenho criticado (tal como à FIFA) com frequência, à conta da corrida ao controlo da distribuição da receita audiovisual associada ao futebol. A verdade, porém, é que, entre o convite do Vincent Garcia, a 4 de Setembro, e a entrega do meu voto, a 20 do mesmo mês, ninguém – reforço: ninguém – me abordou acerca do meu voto. Votei em plena consciência. No limite, entre Rodri e Vini, o que me fez decidir foi o terceiro critério – e a reação do campo do Real Madrid, recusando-se a comparecer à cerimónia de ontem não fez mais, na minha perspetiva, do que dar-me razão. Vini Júnior fez uma excelente temporada, apesar de manchada pela seleção brasileira – esteve nas derrotas com Uruguai e Colômbia e no empate com a Venezuela na qualificação para o Mundial, bem como na Copa América, da qual o escrete saiu sem glória nos quartos-de-final. Mesmo assim, ajudou muito o Real Madrid a ganhar a Liga Espanhola e a Liga dos Campeões, somando 26 golos e 11 assistências. A vida dele em Espanha, onde tem de levar com insultos racistas vindos das bancadas com frequência, não é fácil, mas a relação que ele mantém com adversários, adeptos e o ambiente em geral tem muito espaço para melhorar. E era nisso que, enquanto maior clube do Mundo, o Real Madrid tinha o dever de ajudar, em vez de se afundar na soberba florentiniana que não admite senão a vitória. 

Não me canso de dizer que o futebol é um jogo em que se pode ganhar, perder e empatar. Não há vencedores por decreto, equipas que entrem em campo com a chamada “obrigação de ganhar”. O respeito pelos vencedores é igual em importância ao respeito pelos vencidos. E, ainda que tenha no seu hino de “cavaleiro de honra” a promessa de que “quando perde dá a mão”, o Real Madrid anda demasiado esquecido disso no seu gigantismo para fazer bem a quem dele gosta. E a quem o serve, que é o caso de Vinicius Júnior. 

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