10h35 CEST
01/10/2024
O que faz um campeonato? Jorge Jesus acha que são os jogadores – ou pelo menos diz que acha que são os jogadores, que eu acho que ele acha que são também os treinadores mas prefere não o dizer... Jesus defende este primado dos futebolistas para justificar a supremacia da Liga Saudita sobre campeonatos não tão endinheirados, como são o nosso ou até, o limite da ambição, o francês, já um dos “Big Five”. O raciocínio faz sentido, mas eu acho que parte de uma premissa errada. Porque o que faz os campeonatos não são os jogadores. Ou melhor: até são os jogadores, mas muito em função do nível de exigência que eles adotam nas várias situações com que são confrontados. E a Liga saudita, por lhe faltar tudo o resto, por ser uma Liga construída do nada e em cima das exigências deste futebol dois-ponto-zero, o futebol do Instagram e do TikTok, o futebol assente no modelo do jogador-vedeta acima da paixão pelo que importa, que é o clube, não é propriamente um ambiente capaz de tirar o melhor de cada um. É por isso que, não, a Liga saudita não está sequer ao nível da portuguesa, quanto mais um patamar acima.
“É um campeonato muito forte. Às vezes, como vejo a televisão portuguesa, vejo quererem comparar este campeonato com o campeonato português. Como se tivesse comparação. Não há comparação possível”, disse Jesus na entrevista que esta semana concedeu a A Bola. Rúben Neves, jogador de Jorge Jesus no Al Hilal, partilha desta opinião. Percebeu-se bem isso no seguimento da última partida da seleção nacional, a receção à Escócia, quando o médio foi confrontado com o decréscimo de competitividade a que está sujeito no clube e questionado se isso poderia prejudicar o seu espaço de afirmação na seleção nacional. “Se compararem os meus dados de GPS do futebol saudita para o futebol inglês, corro ainda mais, com a diferença de que corro com 40 graus”, disse o médio na “flash-interview” após o jogo, no qual saiu do banco para ajudar a consumar a vitória. “Tanto eu como o Cristiano [Ronaldo] entrámos e demonstrámos mais uma vez que o futebol saudita não é inferior ao futebol europeu, principalmente em termos físicos”, completou, ainda por cima depois de Ronaldo ter feito o golo do 2-1 já perto do final.
Claro que os dados de GPS não são comparáveis para nós. E não são por uma razão muito simples: não temos acesso aos registos de Rúben Neves no futebol saudita nem no futebol inglês. Eles são os tais “dados confidenciais” a que Roberto Martínez aludia há semanas, a propósito do que a mim me pareceu a utilização excessiva de Ronaldo no Europeu. Martínez, porém, tem acesso a esses dados e continua a convocar sempre o jogador, pelo que é possível que Rúben Neves até esteja a dizer a verdade. Ainda que, apesar de tudo, haja treinadores que pura e simplesmente riscam quem opta por se mudar para a Liga Saudita. “Se tens 26 anos, a tua ambição mais importante tem de ser a desportiva e não a financeira. E Bergwijn ir para a Arábia Saudita aos 26 anos não tem nada a ver com o aspeto desportivo”, disparou há semanas Ronald Koeman, o selecionador neerlandês, acerca da transferência do atacante do Ajax para o Al Ittihad, no fecho do mercado de Verão. “A história dele na seleção está fechada”, sentenciou ainda o técnico. E, das duas uma: ou Koeman não tem acesso aos dados de GPS da Liga Saudita ou, pura e simplesmente, olha para eles de uma forma diferente, a ponto de ter sido publica e excessivamente incorreto com o jogador. No fundo, o que está em cima da mesa é uma questão que não vem das Ligas, mas da relação que cada jogador estabelece com aquilo que dele se espera, o seu patamar de exigência. Cada caso é um caso? Sim. Mas é o facto de a Arábia Saudita permitir que esta seja uma decisão individual de cada um que faz com que aquela Liga não esteja no patamar das Ligas europeias de topo, onde o nível geral é determinado por fatores diferentes.
Que fatores são esses? É simples. Se os sauditas têm dinheiro para contratar todos os craques que lhes der na gana, há uma coisa que não podem comprar, porque não está à venda, que é a história. O que faz um campeonato não são só os jogadores e os treinadores. São também os dirigentes – e não há problema, que também se importam os melhores. São as instalações – e isso também se resolve, que há dinheiro em barda para estádios e centros de treino. Mas são ainda os adeptos e a relação que estes têm com o jogo. No Mundial de 2022, no Qatar, pude confirmar com os meus próprios olhos uma coisa que já me tinham dito: a relação dos adeptos árabes com o futebol é de uma paixão extraordinária. Acredito, por isso, que ali não faltem adeptos capazes de cometer loucuras pelo futebol. A diferença para a Europa é que, como lhes falta o enquadramento histórico, a relação destes adeptos com o jogo é modernizada e marcada pelo culto da personalidade, ao invés da dos europeus, que apesar de tudo ainda obedece muito à noção imaterial de pertença a um clube. Os adeptos sauditas mais entusiásticos não o são tanto do Al Hilal, do Al Nassr ou do Al Ittihad mas sim do Ronaldo, do Neymar ou do Benzema, que seguem em todas as redes sociais, de quem consomem todos os conteúdos e por quem provavelmente manterão toda a devoção se um dia eles se mudarem de clube. A relação que eles têm com os clubes não segue a sombra tutelar de um Eusébio, de um Manuel Fernandes ou de um Fernando Gomes, como a dos nossos adeptos com os três grandes de Portugal. A pergunta que se impunha, tanto a Jesus como a Rúben Neves era a seguinte: quem é o jogador mais importante da história do Al Hilal, aquele cuja recordação os craques de hoje tentam honrar com a sua excelência em campo?
Este empoderamento do jogador na relação com os adeptos faz toda a diferença, porque a partir de certa altura – sobretudo se se trata de jogadores veteranos e já estabelecidos na vida – para eles o fundamental já não é só aquilo que fazem em campo. É a story que postam no Instagram, a foto que fazem com artigos de uma ou de outra marca, a entrevista que dão a este podcast de um amigo e a que negam a outro, não tão amistoso. Tudo isto pode contribuir para baixar o tal patamar de exigência, que alguns, por ambição de encontro com a história – como Ronaldo – mantêm nos píncaros, mas que outros, que tudo o que querem é ganhar bom dinheiro e manter o nível que lhes é exigido por uma Liga onde o rendimento em campo não é tão influente como a performance mediática, deixam cair para patamares preocupantes. E está tudo bem. A Liga Saudita é, de facto, como disse Jesus, uma Liga de jogadores. Resta-nos, como já lá temos quatro jogadores de seleção – Rúben Neves, João Cancelo, Cristiano Ronaldo e Otávio – continuar a zelar para que eles olhem pelo menos tanto para os seus próprios dados de GPS como para o alcance das stories de Instagram ou das publicações no TikTok.